Crônica de viagem: Charqueada São João


A História nos ensina lições duras e inestimáveis. E o melhor de tudo é que na Charqueada São João a História está ao nosso redor

Normalmente, quando se estuda a história de uma determinada região, surgirão aqui e ali algumas coisas que nos farão questionar a civilização e a cultura de uma época. Aquilo que era o comum em um momento histórico, que movia a economia, que gerava frutos e construía cidades, hoje é visto como uma nódoa difícil de lidar.

Assim é com as charqueadas de Pelotas.

Quando se visita, hoje, o entorno poético das famosas fazendas dedicadas à produção do charque no Rio Grande do Sul, chocam as informações que o guia vai fornecendo: a dureza da vida, a frieza com que se tratavam os escravos, a falta daquilo que hoje chamamos de humanidade. As charqueadas, afinal, se ergueram e perpetuaram à base da mão de obra escrava e de um trabalho tão duro que parece inumano. As condições que tais lugares ofereciam – as carcaças dos bois abatidos, o odor, as condições em que ficou o arroio Pelotas, justo este que deu nome à cidade, com a instalação das inúmeras fazendas charqueadoras em suas margens – tudo contrasta de tal maneira com o que se vê hoje que a primeira reação é de repúdio. Parece impossível que um lugar tão delicioso, com recantos pitorescos e sombras centenárias, possa ter sido cenário de costumes pouco civilizados e episódios sangrentos. Parece impossível que Saint-Hilaire tivesse escrito nas paredes da Charqueada São João, uma das páginas mais tristes da história da escravidão no Brasil, a descrição que ele faz de um menino negro, escravo no salão da casa. Daquela casa.

Mas esta é a impressão superficial.

Ao visitar a Charqueada São João e dar-me conta de onde estava, o primeiro e mais poderoso sentimento que tive foi o de poder tocar a História, a História que fez de mim a gaúcha que sou. Emocionou-me estar na casa em Saint-Hilaire hospedou-se em uma de suas inestimáveis viagens, emocionou-me olhar para o potreiro ao lado e imaginar as incontáveis mantas de charque secando ao sol inclemente do pampa. Emocionou-me mergulhar os pés em águas que em outro século tinham a fama e ser vermelhas, tintas pelo sangue do gado morto nos abatedouros que abundavam na região, e ver, agora, peixinhos brincando junto ao sapato, a água límpida e rica em vida. Emocionou-me navegar no arroio com ambições de rio, seus juncais poéticos, os pescadores sentados em suas margens, gente remando na calma de sua tarde, a brisa fresca e o cheiro bom dos campos úmidos, as crianças tomando banho nas águas frescas e abanando para a gente numa alegre algazarra de verão. Emocionou-me estar ali, simplesmente.
A visita à Charqueada São João foi um dos passeios mais interessantes que fizemos nas férias. Apaixonante, mesmo. Cenário de mini-série global, a casa e seu entorno oferecem história, tranquilidade e hospitalidade. A visita, riquíssima em informações sobre o cotidiano de uma fazenda como esta nos idos dos séculos XVIII e XIX, nos leva através de uma parte do labirinto de salas e quartos da construção, erguida toda de acordo com os preceitos e o simbolismo maçônico, e é feita com guia – um luxo na vida turística gaúcha. Até o jardim, aparentemente tão bucólico, esconde seus segredos e mistérios – e nós passamos horas lendo autores estrangeiros e imaginando aventuras em lugares que não conhecemos! Finalmente, o visitante que se inscreveu previamente poderá fazer o passeio de barco pelo arroio e admirar as antigas sedes de charqueadas, algumas transformadas em pousadas, outras ainda propriedades particulares. Cada uma com seu encanto e sua identidade própria. E todo o passeio gerenciado e seguido de perto pelo proprietário da estância, o que dá ao roteiro uma qualidade sem igual e uma sensação de generosidade e acolhimento.
São as lições que o Tempo nos ensinou: são as portas abertas as que recebem os amigos – os novos amigos, os de todas as partes, os admiradores e as pessoas dispostas a valorizar a capacidade do mundo de se renovar eternamente: é só olhando para trás, que compreendemos de fato a importância de ir em frente.
Fonte: www.porteiradafantasia.blogspot.com
Blog da escritora e professora de dança, Simone Saueressig