Kiša: tradução da chuva em duas composições por Brás Silvano


Há tempos que, com um intuito em mente, buscava palavras certas, mas elas me escapavam. Nesta sexta-feira, com o evento da chuva, creio que me ocorreu um caminho de acesso para falar de um projeto que me encantou: Kiša. A palavra é croata — diz: chuva. E como pensar aquilo que me parece pairar suspenso por todas as composições senão através do nome? A tradução é exótica; noutro idioma, clama atenção ao que nos é, por vezes, trivial a ponto de passar-nos despercebido, e o clama estranhando, como se houvesse ali senão o desconhecido da chuva, como se o outrora trivial fosse agora tão-somente o desusado, uma palavra que não se acerta com seu referencial e faz-nos pensar o que há nessa relação  entre o que chamamos de chuva e o chamado dessa chuva em ato.  Hoje, numa era de alta fidelidade técnica e de reprodução como extensão presencial do original, talvez  soe estranho aproximar-se da chuva através da música ou da palavra — um passo mais poético que difere da capacidade de adicionar ruídos ambientais através do RainyMood, por exemplo.

Mas assim me ressoam as composições: uma aproximação da chuva através da música, um ressoar em conjunção que busca menos o elemento dessa chuva do que a complexidade de um imaginário persistente. Não há, nem em II nem em IV, uma metafísica da chuva; há, por outro lado, uma caminhada, um cântico que procura e grita — e aqui o grito chama, tateia no escuro e convoca na ausência — tem hora, tem lugar.

Nas canções, há uma preocupação técnica evidente. Trata-se de um domínio arrastado que perfaz uma tradição secular, mas sobrepõe-se a isso o digital como interferência, como barulho. E não se assemelha, pois, à chuva que decai sobre uma cidade erigida desde sempre e para sempre a qual todo ruído já incorporou? A chuva aparece, pois, como o desvelo ruidoso de uma temporalidade inacessível: se, de certa maneira, parece-nos incompreensível a música erudita ou mesmo a cidade, o evento da chuva recobre como aquilo que simultaneamente desfigura e figura — fecha, mas dá acesso — fá-lo através do ruído que desmancha e torna a mostrar-nos o que está diante e nós. Nas músicas, não há letras; o cântico é rumor, murmúrio ecoado de um desconhecido tão próximo, de uma incerteza que se faz clara como incerteza e, por instantes, deixa de entranhar-se ao familiar, e o deixa ali como o mais próprio do estranho.Não há, porém, como definir o ruído — o ruído indefine-se. De um lado, não se sabe se é a chuva que interfere numa arrogada pureza pluvial ou se é esta que interfere naquela; de outro, se a sonorização digital artificial interfere na melodia clássica e sólida ou se, outra vez, esta interfere naquela. A música compõe em uma comutação recursiva; se ora a voz atravessa a paisagem e vem-nos conduzir, ora ela se faz fundo e para lá chama como ruído — e assim também se comportam os demais recursos.

A palavra é pertinente: não se falasse em elementos musicais, pensaríamos a ressonância da chuva na música e da música na chuva como recursos — estratégia de composição; o que compõe serve e desserve, o compósito é multiforme e arma-se em um plano de imanência: a chuva que Kiša refere é menos a água que decai na cidade do que a cidade-chuva-decadente.

Por isso, confunde-se: aponta à fusão complexa que caracteriza a própria chuva. Também por isso, por essa minha ficção, interessa-me. Há tempos que nada me encantava assim.


“Kiša é um projeto que mistura música eletrônica, experimental, erudita, dentre outras. A formação não é nada usual, temos violoncelo, kalimba, harpa celta, piano, bandolim, flautas, vozes e tecnologia.”