
[Por Joice Lima, escritora e jornalista]
Assisti o monólogo “João”, encenado pelo Núcleo de Teatro do Grupo Tholl, no último domingo (7/9), na primeira apresentação em Pelotas – a estreia ocorreu no Teatro Olga Reverbel, de Porto Alegre, em 22 de agosto. Com texto de Helena Prates, que também assina a direção com Maria Brito, a montagem de cerca de 60 minutos comemora os 40 anos de carreira teatral de João Schmidt (que conheço desde 1986, quando fazíamos teatro no Grupo Desilab, sob direção de Valter Sobreiro Junior, na então Escola Técnica, hoje IFSul). Schimdt dá vida a outro João: João Pedro dos Reis, um pelotense, homossexual assumido, assassinado dentro de casa em 15 de janeiro de 1897. A atuação de Schmidt é cirúrgica – forte ou delicada, séria ou sarcástica, conforme o momento pede – e com sua voz potente e de excelente dicção, no espaço de boa acústica, não se perde nem um murmúrio.
“Quem é esse rapaz que tanto androginiza?
Que tanto me convida pra carnavalizar
Que tanto se requebra do céu de um salto alto
E usa anéis e plumas pra lantejoulizar”*
A letra de Androginismo*, de Kledir Ramil e sucesso dos Almôndegas em 1978, não aparece na peça, mas uma versão instrumental bem lenta tocada ao piano, com arranjos de Dudu Trentin, está presente do início ao fim, fazendo a costura de cenas. Enquanto a canção (maravilhosa!) caçoa da homofobia em uma alegoria bem-humorada, a peça se abstém de plumas, lantejoulas e salto alto (não precisa deles) e utiliza apenas um colar de pérolas para vestir um assunto tão denso de poesia. “João” é quase um poema encenado, um daqueles poemas que nos levam às lágrimas.
O problema não está no fato de João Pedro ter sido assassinado – pode (ou não) ter sido morto por um ex-namorado ou amante, como especularam na época. O que revolta é o desinteresse da polícia e da sociedade em solucionar o crime, “uma cidade que prefere esquecer seus diferentes”, como destaca o texto. Uma cidade que parece sentir certo alívio ao livrar-se da presença incômoda. Uma sociedade que culpabiliza a vítima pelo seu destino trágico. Como se “João Sinhá”, como era maldosamente chamado, fosse uma pessoa menor por ser gay. A Pelotinha do século 19, além de racista, era homofóbica. Surpresa!
Apesar do tema pesado, o espetáculo todo é permeado de sutilezas e belezas. Mescla um cenário minimalista, em preto, com os figurinos em marrom, bege e branco, e com papéis pardos, que unidos ao fundo preto, ao chão de madeira clara do espaço e à iluminação de Thiago Dockendorff, em que predomina o âmbar, nos dão a sensação de estar folheando um álbum de fotografias em sépia, com a nostalgia da memória associada à atemporalidade.
Em alguns momentos, João confidencia ao espelho e nos têm como cúmplices, enquanto sua imagem é projetada na parede ao fundo, em um belo efeito visual. Um dos momentos de maior lirismo do monólogo é a cena em que João descreve a relação com a mãe: verdade e ficção dançam (suponho) e embalam a peça na atmosfera poética. O menino brinca com o robe da mãe… A mãe que nunca tentou forçá-lo a se manter “na linha reta da sociedade”. A gente engasga (ao menos eu engasguei)… Palavras doces às vezes doem mais que uma porrada no estômago. A descrição da relação com o pai, por outro lado – em uma sacada genial da dramaturga e diretora -, dispensa as palavras para dar lugar à expressão de escárnio e deboche do ator, que comunicam o que o pai pensava de João e o que João pensava sobre o que o pai pensava dele.
Projeções na parede de matérias veiculadas em jornais da época sobre o assassinato de João e de dados atuais sobre crimes decorrentes de homofobia nos lembram que as tragédias motivadas por ódio homofóbico ainda acontecem em muitos países e que “o Brasil é o país que mais mata LGBTs no mundo”. Um recurso que nos recorda que aquele passado se funde ao presente.
Em “João”, cada elemento cênico cumpre o seu papel e a peça, como um todo, também cumpre o seu papel – que se espera de um bom teatro! – de causar desconforto e provocar reflexão. Porque para além da beleza da arte, do resgate da memória e da importância da denúncia, “João” nos faz sair do teatro com uma frase reverberando na cabeça, como um eco: “E tu, vais sair desta cena batendo palmas? Vais fingir que é só teatro?” Um soluço escapa, subitamente, da garganta, e a gente nem sabe como aconteceu. Vi muitos secando as lágrimas, outros de olhos vermelhos e fico me perguntando o que nos toca tanto? Será a tristeza em perceber que a injustiça insiste em proteger os assassinos homofóbicos? Ou talvez seja porque a peça não é sobre “Quem matou João Pedro dos Reis?”, mas sobre a dor maior de constatar que, mais de um século depois, a nossa amada Pelotinha mudou tão pouco… o país¹, o mundo mudou tão pouco… os seres (des)humanos evoluíram pouco ou quase nada.

1 – O influenciador digital Kakay Britto, de 26 anos, homossexual, foi executado a tiros na madrugada de 4/9/25, dentro de sua casa, em Salvador/Bahia.
Financiada pela Política Nacional Aldir Blanc (Pnab), a peça pode ser assistida gratuitamente no Centro de Treinamento Tholl nos dias 14, 15, 21, 22, 28 e 29 de setembro (Anchieta, 925).

A Satolep Press trabalha com profissionais diferenciados, atuantes no mercado gaúcho, e com ampla experiência em produção de conteúdo, fotojornalismo, projetos culturais, empresariais e coberturas jornalísticas. O time de sócios é formado por Gabi Mazza, Nauro Júnior e Vinicius Peraça.
Faça um comentário