Papá Noel


papaHá  complexas indagações formuladas pelos infantes que obrigam os pais a elaborar respostas inventivas, quando não fantasiosas. Seja rico ou seja pobre a pergunta sempre vem: existe Papai Noel? Eu ainda não tinha filhos, mas já ensaiava mentalmente a resposta para quando surgisse a dita questão:

    – Existe Papai Noel?

– Quê?

    – Se existe o Papai Noeeeel…, tá surdo?

– Olha! Existe, claro. Não viu na tv?

    – Sim… sim… mas…

    – Tu viu lá no shopping. Não lembra?

    – Sim, mas era diferente.

    – Isso porque não era a mesma pessoa.

    – Como assim?

    – Vou dar um exemplo: existe palhaço?

    – Sim.

    – Então! É a mesma coisa. Existem vários papais Noel, assim como existem vários palhaços, porque são muitos e pronto.

    – Ah, é? E quem entrega os presentes?

    – Eu. Ou posso contratar um “Papai Noel” se prefere.

    – Ou um palhaço.

    – Sabia que ias entender.

Assim mesmo, fácil e racional. Pode até parecer lógico demais para um diálogo com uma criança, mas era minha resposta provisória para o assunto. Com essa explicação eu não acabaria com a existência do Santa, apenas lhe tiraria o  privilégio da onipresença. Solucionando assim o enigma, evitaria ainda outros diálogos como:

    – O carro dele é puxado por veados?

– Não é carro, é trenó. E não são veados, são renas…

    – Como ele consegue entregar tantos presentes? Ele fala todas as línguas?

    A tortura seguiria infindável, chegando à imponderável:

    – Ele é  igual a Deus?

Em minha infância eu tinha certa fobia do dito bom velhinho. Era assustador. A barba amarelada ou postiça. A roupa suada de cetim vermelho em sol escaldante de pleno verão. A voz abafada por trás de uma máscara deformada, com os olhos fora do eixo de abertura. De arrepiar!

Nunca esqueço uma vez em que me levaram para vê-lo no centro de Porto Alegre. Foi um fiasco. Abri o bocão a chorar. Não deu pra evitar. A luva preta de motoqueiro estendida em cumprimento, seguido por um grave “ho-ho-ho”, foi a deixa para o pavor.

Na fase adulta, se é que isso existe, eu já trabalhava na Aduana Brasileira no extremo sul do país, quando vivi uma experiência insólita. Ocorreu em um final de expediente numa tarde de dezembro de 2003. Apresentou-se ao balcão um “hispano hablante” para fazer a admissão temporária de seu veículo no Brasil.

– Buenos días! – bradou em bom som.

– Boa tarde. ¿Uruguayo o argentino? – eu, em bom portunhol e com aquela disposição de plantonista trabalhando num domingo. Sempre iniciava com esta indagação, pois aos uruguaios circulando nas imediações fronteiriças estava dispensado o dito trâmite.

– Yo soy un uruguayo, que vive en la Argentina y que habla japonés.

– Bueno! – que imbecil, pensei, querendo fazer graça. Mas o que me chamou atenção foi que o homem tinha uma quase cinematográfica cara de Papai Noel. O visual era natural. Com barba branca ondulada, pequenos óculos, voz forte e corpo imponente.

Seguindo a tramitação de entrada do veículo solicitei:

– ¿El coche está a su nombre, señor?

– Sí, sí, claro.

– ¿Tiene la cedula personal?

– ¡Por supuesto!

Ao verificar a foto no documento de identidade fiquei ainda mais admirado da sua semelhança com Papá Noel.

– Ok! E o seguro do Mercosul?

– ¿Ahh?

– ¿Tiene la carta verde, seguro del Mercosur?

– No, no tengo.

– Entonces no se puede pasar.

– ¡Ah, señor no sea malo, yo he pasado por acá todos los años!

– É uma determinação nova, senhor. Começou este ano e estou aqui para fazer cumprir a lei.

– Y sin esto no se puede pasar?

– Ene-a-ó-til. No!

O velho resmungou mais um pouco enquanto revirava em seus papéis em busca do comprovante do seguro internacional, achando-o por fim.

– Mire acá tengo…

– É esse mesmo. Esta listo, señor. Boa viagem!

– ¡Barbaro!

Enquanto ele se dirigia ao guichê ao lado para fazer os trâmites pessoais de imigração na polícia federal, falei baixinho embora com um tom de impaciência capaz de provocar um incidente internacional:

– Que barbaridade! Até Papai Noel tá vindo pro Brasil no verão.

Nos minutos seguintes fiquei distraído atrás do computador com as outras atividades da repartição. A buzinada vinda da pista chamou atenção e para minha surpresa lá cruzava uma enorme camioneta vermelha com o dito senhor que me acenava sorridente. Na cabeça, um gorro de Papai Noel. Chocado escondi-me atrás do monitor tal qual Moisés na sarça ardente diante de Deus. Só não abri o bocão, pois, sabe como é, a tal fase adulta e suas proibições.

Portanto resta dizer que reelaborei minha resposta à questão inicial. Se num dos próximos natais um filho meu perguntar se existe Papai Noel, direi o seguinte:

– Sim, existe. É um uruguaio que mora na Argentina e fala japonês. Em dezembro ele entra no Brasil de camionetão e só Deus sabe como ele chega a tempo ao Pólo Norte para iniciar os trabalhos natalinos. Vamos ao shopping?

EZEQUIEL, Márcio. Papá Noel. In: KIEFER, Charles. (Org.) 104 que Contam. Porto Alegre: Nova Prova, 2008.

Márcio Ezequiel – Natural de Porto Alegre, mudou-se há pouco tempo para Pelotas. Historiador e escritor, é Mestre em História pela UFRGS. Estudou a Literatura de Viajantes no RS no século XIX.  É servidor da Receita Federal tendo trabalhado de 2001 a 2004 no Chuí, experiência que ensejou a crônica acima. Em 2007, publicou o livro: “Alfândega de Porto Alegre: 200 anos de História.” Atualmente dedica-se a narrativas breves: crônicas, contos e minicontos.