O ano de Angélica Freitas – parte 2


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– No grupo religioso?

Só mulher. E a partir dessa interferência eu fiquei pensando, “pô, mas quem elas acham que são pra se meter na vida dos outros?” Mas aí, extrapolando, eu me pergunto assim, “quem é que manda no corpo da mulher afinal?” Porque, se a mulher não pode fazer um aborto, ela não pode fazer o que quiser com o corpo dela. E tu tens uma série de impedimentos, o governo, a medicina mesmo, o médico pode se recusar a fazer, ou a dar atendimento depois de um aborto. Enfim, aí comecei a pesquisar coisas na internet sobre o corpo da mulher, e encontrei num blog de medicina a frase “um útero é do tamanho de um punho fechado”. Interessante, eu não sabia, achava que o coração era do tamanho de um punho fechado. Fiquei com essa frase na cabeça e uns cinco dias depois escrevi um poema, Um Útero É Do Tamanho de Um Punho – não botei “fechado” porque achei que não precisava. E já tinha então esse poema, era um poema de cinco páginas, tinha mais alguns, tinha que mandar dez poemas pra Petrobras. Aí fiz o projeto, mandei e eles aprovaram.

– Nas correspondências que tu trocasse com o (autor paulista) Fabrício Corsaletti no blog do Instituto Moreira Salles, dissesse que a palavra “útero” no título poderia ser ofensiva (obs: não foi bem isso). Porque?

Não sei se ofensiva, mas muita gente se incomodou. Tipo, quando tu escreve uma coisa, tu mostra pra um amigo. Aí perguntei o que achavam de colocar de título Um Útero É Do Tamanho De Um Punho. Só uma pessoa achou legal, o Vitor Ramil. Ah, e a minha mãe também, minha mãe achou legal. Ela disse: “minha filha, acho que tu tem que deixar esse, tá muito bom, tá forte!” (risos) E eu perguntei pro Vitor e ele falou que gostou, lembrou que o Nirvana tem um disco chamado In Utero. Bom, se o Vitor gostou, cara, não preciso perguntar pra mais ninguém.

– Em todo o livro, mas especialmente na primeira parte, Uma Mulher Limpa, tu usa humor, ironia pra falar de limitações impostas às mulheres, coisas que podem ser encaradas como violência. Tu não tem nenhum problema com isso?

Sabe que nem acho engraçado o que eu escrevo? Tem ironia em algumas coisas…

– Não ocorre de alguém te dar um feedback assim, achando que é sério?

Não, ocorre de pessoas que só viram ironia no livro e não gostaram.

– Como assim?

Que acharam assim: “ah, esse livro é irônico”, e só, sabe? Não é só irônico. De repente, a gente estranha porque no Brasil a poesia é muito séria, cara. Tudo no Brasil é muito sério, na literatura… Se comparar tipo, com a Inglaterra… mas bom, a ironia faz parte da Inglaterra. Se tu pensar nos filmes do Monty Python, ou mesmo aquele O Guia Do Mochileiro Das Galáxias. Programa de rádio, programa de TV, jornal, tudo tem ironia; aqui não.

– Tens uma ideia de por que isso acontece?

A gente acha que pra uma coisa ser boa ela tem que ser séria, tem que ser o mais elevada, o mais complicada possível. Não necessariamente. Na poesia as pessoas acham que tem que ter uma “ligação direta com o divino”. É possível, mas não é a minha praia, sabe, me deixa. Mas a ironia é um recurso, não é que eu pense “vou fazer um livro que tenha ironia”, mas é um recurso pra tu fazer uma crítica.

– Quanto de feminismo tu acha que tem no livro?

Eu não sei te dizer. Na verdade, pra mim, feminismo é a defesa dos direitos da mulher. Pra mim é isso.

– Mas existe um certo grau de feminismo no livro…

Eu acho que sim, mas é que não penso nesse termos. Infelizmente a gente ainda vive num mundo em que não existe igualdade. E é sério, cara, as mulheres ganham menos, mesmo num jornal, um jornalista ganha mais. Porque tem essa ideia de que o homem é pai de família. Então, é ridículo? É, em 2013 a gente ainda tá…

– Discutindo isso…

Mas o meu livro não foi escrito com o único intuito de defender os direitos da mulher, entendeu? É a minha visão de algumas coisas, minha experiência com a linguagem. Talvez o poema mais político que tem ali no livro seja Um Útero É Do Tamanho De Um Punho… Mas penso que os outros também podem ser lidos assim. Acho que é um livro político sim, no momento em que fala da situação da mulher é um livro político. Tem implicações.

– Tu é contra utilizar a poesia como suporte de uma causa ou só não é a tua praia?

Geralmente, quando tu começa a usar a poesia pra essas coisas, fica muito ruim. Não sei o que acontece. É uma coisa que independe um pouco da tua vontade. Tem umas coisas na poesia que, por mais técnica e leitura que tu tenha, não estão sob teu controle. Sei lá de onde vêm, do subconsciente. O subconsciente é um grande pote de ambrosia alucinógena da Crochemore. (risos) A minha relutância é botar um rótulo no livro, tem gente que enxerga feminismo no livro, tem gente que não, que acha que eu tô lidando com a linguagem. Assim, é o livro de uma mulher que se põe a observar como o mundo é em relação às mulheres ou como as mulheres são em relação ao mundo. É isso. Já me perguntaram “tu leu teoria feminista pra escrever o livro?” Eu disse, “não, pra escrever o livro não”, seria um outro livro. Peguei mais o senso comum.

– Mas tu leu alguma coisa antes?

Eu li pouca coisa de teoria, alguns textos na internet. Mas é engraçada a reação de algumas pessoas. Alguns amigos meus me perguntaram: “vem cá, mas que história é essa, tu é feminista agora?” Acham a pior coisa do mundo, como se eu tivesse virado uma guerrilheira das Farc. “Que história é essa??”

– E as tuas amigas feministas, tiveram acesso ao livro?

Ainda não, não mandei o livro pra elas.

– E qual tu acha que vai ser a reação?

Putz, cara, não sei se elas vão gostar.

– Vão achar que tu foi “guerrilheira” de menos.

Talvez, não sei, guerrilheira não. Mas só o fato de fazer um livro de poesia sobre mulheres, que não caia num estereótipo… Na verdade nem sei dizer se existem muitos livros de poemas sobre mulheres, mas acho que a tendência é ser uma coisa, assim, mais: (arrasta a voz) “a mulheer, essa coisa dooce, suaave”.

– Um dos poemas fala da mulher como construção. Tu acha que existe uma mulher, um feminino, fora da construção?

Como assim “fora da construção”?

– Alguma coisa que não é construída socialmente, que pode-se dizer “isso é feminino”.

Olha, é que a palavra “feminino” já tá tão associada com algumas características que supostamente a mulher teria que ter… Na verdade, a gente não tem como saber. Teria que ver, por exemplo, em tribos indígenas, como é que é. Eu acho que sempre existiu uma divisão de tarefas entre gêneros. Tudo começou na divisão de tarefas. Não sei se, em algum momento da história da humanidade, a mulher teve a mesma força que o homem, ou a mesma agilidade, mas o fato é que a mulher tem os filhos, a mulher amamenta, a mulher vai cuidar da sua prole, pra que um tigre não venha e coma… Aí começa a divisão de tarefas, e aí começam uns atributos também. Mas tem algumas características que são aprendidas, que são exageradas. Tu pode ver de uma cultura pra outra. Por exemplo, as mulheres latinas usam roupas que deixam mais corpo de fora, uma maquiagem diferente.

Não sei, eu não sou antropóloga, mas talvez algumas coisas contribuam pra ainda existir um machismo, uma discriminação contra as mulheres. Por exemplo, é muito difícil ver uma mulher dirigindo um ônibus. Porque precisa de força? Mas em outros países tu vê mulher dirigindo ônibus. E em outros países tu vê mulher trabalhando de pedreira. Enfim, eu acredito que existe uma mulher fora da construção e existem mulheres na construção civil, só que em outros países. (risos)

– Sobre Guadalupe: tu lia gibi antes de começar a escrever a graphic novel?

Eu lia gibi, mas não muito de super heróis. Quando era pequena lia muito gibi, Turma da Mônica, coisas da Disney. Depois li aquela série Love And Rockets. E achei aquilo muito diferente, muito legal, daí comprei algumas revistas. Já adulta li o Persépolis, de uma autora iraniana, Marjane Satrapi, sobre quando teve aquela revolução cultural no Irã. Li um outro livro chamado Maus, do Art Spiegelman. Achei sensacional. Depois li uma série de graphic novels, quando me convidaram pra fazer a Guadalupe, que tinham saído havia pouco tempo.

– Tu já tinha tentando escrever uma narrativa antes?

Tinha tentado começar a escrever uma novela, que ficou horrível, e eu botei fora. (risos)

– Chegou a completar?

Não, escrevi, vamos supor, um terço da novela, achei horrível e não quis continuar. Mas daí recebi essa proposta pra escrever uma sinopse de novela gráfica. Foi aprovada, então essa é a minha primeira… bom, segunda tentativa, com narrativa. E fui obrigada a terminar.

– E o Odyr entrou como na jogada?

O Odyr entrou porque eu sugeri o nome dele, gostava do trabalho dele e sabia que, como era meu amigo, a gente ia se entender. Se ele me dissesse: “olha, isso aqui não tá legal”, não ia ter problema nenhum. Se eu não gostasse de alguma coisa, também podia falar, porque a gente tem esse nível de franqueza um com o outro. Mas quem tinha sido escolhido pra desenhar a Guadalupe era um desenhista português que, não sei por que razão, de última hora, não pode. E quando eles me falaram que o cara não podia, eu disse: “tem um cara aqui na minha cidade, o Odyr, eu gosto muito dele”. E aí eles gostaram, um cara conhecia já o trabalho do Odyr, e chamaram. E eu fiquei super feliz, né. Dois pelotenses no livro.

– Vocês tiveram muita interação pra desenvolver o projeto?

Olha, na verdade deu super certo, a gente não precisou mudar muita coisa. O que aconteceu foi o seguinte: eu ia mandando pedaços do roteiro pro Odyr e ele ia desenhando. Baixei um programa de roteiro e ia fazendo por quadrinho, fazia a descrição do quadrinho e o diálogo, descrição e diálogo, descrição e diálogo. E eu disse pra ele, “se tu achar que alguma coisa tem que ser suprimida, pra coisa andar”, porque não tenho prática de roteiro de quadrinhos, botei assim como eu imaginei, como se tivesse passando um cineminha na minha cabeça. E ele fez exatamente isso, condensou umas coisas que não tinham porquê mesmo e que não fizeram falta no fim. E tem coisas que são do Odyr ali, que ele que inventou. Tipo as divisões de capítulos, uma parte ali que ele fala das muxes, que conta a lenda das muxes. Então grande parte do roteiro é meu, mas tem coisa do Odyr ali também.

– Como foram desenvolvidos ao mesmo tempo, Um Útero… e Guadalupe têm alguma relação?

Acho que têm, eu tava com isso na cabeça porque, na mesma época em que escrevi o poema do Útero, escrevi a sinopse da Guadalupe. E as duas coisas tem a ver com o México, porque quando eu tava de passagem lá pelo México, um amigo meu me convidou pra ir no enterro da vó dele. Assim: “não, vai ser legal, porque vai ser um enterro com música e a gente alugou uma van pra sair da Cidade do México e ir até Oaxaca com os familiares. Tem lugar na van se tu quiser vir”. É um enterro tradicional mexicano. Eu tava louca pra ir, mas não podia porque estava acompanhando minha amiga, ela precisava que alguém ficasse com ela. Cara, mas perdi o enterro com música e fiquei com isso na cabeça: enterro com música. E aí quando o Joca Reiners Terron, que é um escritor lá de São Paulo que tava coordenando essa coleção, perguntou “tu acha que tu consegue fazer um roteiro pra uma graphic novel?”, respondi: “ah, me dá uns dias que eu vou pensar”. Eu pensei, “vou fazer alguma coisa com essa história de enterro, porque é sensacional”.

– No momento tu tá no ciclo dos dois livros ainda, né?

Eu tô recebendo as críticas e elogios, mas já tô com outro projeto com o Odyr, que é o Grande Livro Das Ilusões Pelotenses.

– E como estás recebendo o sucesso?

Cara, eu não sei nem o que te dizer, pra mim é… Eu nunca poderia pensar que ia ter essa repercussão. Mesmo. Achava que ia lançar esse livro (Um Útero…) e que algumas pessoas iam ficar incomodadas, sabe? Até porque tinha essa questão do título. Mas nunca poderia prever.

– E muda alguma coisa pra ti?

Não. Não, eu continuo pegando o ônibus do Laranjal, não muda nada. Quem quiser me dar vale-transporte, carona… Não, tô brincando, mas não muda nada, eu não consigo ver, não sei, cara, é muito difícil saber. O que muda, eu acho, é a maneira como as pessoas me vêem, assim, mas pra mim não muda nada. O que muda é a percepção mesmo, é ter mais visibilidade.

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