Frisson: Brasil, Sociedade Automobilística?


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por Duda Ribeiro

Os filmes exibidos quinta-feira na Frisson colocaram pontos de interrogação nas ideias de crescimento econômico e democratização do consumo, tão caras ao Brasil nos últimos anos. Nada é (Yuri Firmeza, 2014), Em trânsito (Marcelo Pedroso, 2013) e Brasil S/A (Marcelo Pedroso, 2014) mostram um país que não é de todos, socialmente estratificado entre uma classe que tem acesso aos bens de consumo e outra que não tem. Ou talvez: um país dividido entre os próprios bens de consumo e uma classe de cidadãos que não os acessa.

O curta de Yuri Firmeza é um documentário/ficção filmado em Alcântara, pequena cidade do Maranhão, onde existem um centro de lançamento de foguetes da Força Aérea e vários palacetes que foram construídos à espera de D. Pedro II, os quais ele nunca ocupou. Frente à esse aparato reside uma população que é central no filme, mas vive à margem desse poderio material. Suas festas populares contrastam com cenas desse mesmo povo ficcionalizado em trajes imperiais; imagem recorrente no longa de Marcelo Pedroso. Nesse contexto, Nada é apresenta uma cidade em ostracismo, transpassada por projetos de modernização inconcluídos.

O acesso aos bens e espaços, não por acaso, também é mote dos dois filmes de Pernambuco, onde o mercado imobiliário e a “modernização” da cidade têm sido constantemente problematizados no cinema. Em trânsito (2013) e Brasil S/A (2014), de Marcelo Pedroso, são uma progressão na mesma linguagem e tema, sendo o curta fosse um experimento para o longa. Bastante musicais e coreografados, se passam em um mundo recheado de máquinas, prédios e latifúndio, onde a humanidade segrega o seu espaço e a natureza míngua frente ao progresso. O longa é esteticamente mais ousado. Não tem uma narrativa clara, sendo conduzido em grande parte pela música. Em contraponto às máquinas que fazem muito barulho, as pessoas não falam. O modo de uso dos bens de consumo, já um tema nos documentários KFZ-1348 (2008) e Pacific (2009), volta como tema às duas ficções apresentadas na mostra.

No ano do Golpe Militar, em Maioria Absoluta (1964), Leon Hirszman documentou grupos de cortadores de cana em condições precárias no interior de Pernambuco, alguns dos quais diziam nunca ter tocado em dinheiro, dentre muitos que alegavam passar fome. Após os 50 anos que nos separam dessa fase da Caravana Farkas, pelo que se pode perceber através dos filmes, a promessa de modernidade não trouxe redenção para todos. O corte de cana, tema recorrente em Brasil S/A, já foi, no tempo do império, trabalho de escravos. Pedroso mostra a substituição do serviço braçal pela máquina, ou seja, pelo conhecimento técnico; o latifúndio, entretanto, persiste como sistema de produção: desde o império, até Leon Hirszman, até Marcelo Pedroso. A amostragem social, amparada por um discurso sociológico em Maioria Absoluta, conta os próprios problemas para a câmera. No filme de Pedroso parece apenas absorta frente à realidade; ordenada, positivada. Ela não reclama, pede ou diz nada: existe sob a égide de uma ordem maior, que é a coreografia que rege todo o universo do filme.

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No longa de Pedroso constantemente aparece uma bandeira do Brasil sem o centro azul, onde constaria a premissa positivista de “ordem e progresso”. O filme, ironicamente, parece rumar à conjuntura total da ordem; à sincronia perfeita entre trilha sonora, seres humanos e máquinas. Dessa maneira, o filme se revela um projeto moderno e cartesiano em essência. Enquanto o êxtase de Brasil S/A mostra um país asséptico e segregado, o filme de Leon Hiszman em 1964 termina denunciando a desordem no Planalto Central (por extensão, no Brasil) e, não por acaso, o silêncio das autoridades frente aos problemas sociais históricos.

Os três filmes da noite mostram um país onde a desigualdade não foi superada pela promessa da modernidade, ou sequer reparada pelas recentes políticas do Governo Federal em democratizar o consumo e melhorar as condições das classes menos favorecidas. Embora os bens materiais sejam muitos e estejam dominando o espaço urbano, não são de/para todos. Essa segregação visceral aparece, após tantos anos de cinema e Brasil, já sistematizada; incorporada através do conhecimento técnico. Na cena final de Brasil S/A, sob um céu azul, a bandeira do Brasil flana majestosa, com um Sol resplandecente alinhado perfeitamente no seu centro vazado. O astro transmite uma possível mensagem de esperança que, ao ser recortada pela própria bandeira, não chega a todos. Como um juízo final bíblico ou uma abdução alienígena, a classe média urbana, única iluminada pelo Sol/bandeira, ascende aos céus e deixa para trás todo o caos que, pelo que o o filme indica, parece inexpurgável de outra maneira.

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